O que
temos escolhido para nossas vidas?
José Lourenço de
Sousa Neto*

Uma
série de acontecimentos, aparentemente banais no miúdo, enganosamente
desgarrados entre si, vão montar a história em que cada uma das personagens
sofrerá tudo o que lhe está designado previamente. Édipo, além de assassinar o
pai, casa-se com a própria mãe, e o drama tem o fim que todos conhecem.
Segundo
os gregos, tocava às Moiras o tecer caprichoso do destino de homens e deuses.
Cloto (“fiar”), manipulando o fuso, tece o fio da vida, velando pelos partos e
nascimentos. Láquesis (“sortear”) puxa e enrola o tecido, distribuindo o
quinhão de agruras de cada um. Átropos (“afastar”) corta o fio da vida – seu
parceiro nesse mister não é ninguém menos que Tânatos (“morte”).
Da
ação das Moiras (Moira = destino), nem Zeus pode escapar, sob pena de ferir a
harmonia cósmica.
No
início do filme argentino “Um conto chinês”1, com o ótimo Ricardo
Darín, em algum lugar remoto na China, uma vaca despenca do céu, literalmente,
sobre um barco e mata uma jovem no exato momento em que ela ia receber a
aliança e o pedido de casamento de seu noivo. Dias depois, um jovem chinês
despenca, metaforicamente, jogado de um táxi, na vida de Roberto de Cesare,
personagem de Ricardo Darín.
A
partir desses dois incidentes, aparentemente desconexos, desenvolve-se o drama
de Roberto, um sujeito de meia-idade, rabugento, solitário, misantropo,
extremamente zeloso de sua vidinha medíocre e seus pequenos caprichos. De uma
hora para outra, vê-se às voltas com um oriental, sem dinheiro, que não fala
uma palavra de espanhol, perdido em Buenos Aires, onde nunca esteve antes, em
busca de um tio desaparecido. Dividido entre expulsar o rapaz de sua vida e
continuar com suas idiossincrasias, de um lado, e uma cobrança íntima por um
comportamento mais humano que o impede de simplesmente deixar o estranho
entregue à sua desgraça pessoal, do outro, Roberto passa por várias situações
cômicas, tentando ajudar o rapaz e, ao mesmo tempo, livrar-se do fardo e da
companhia indesejáveis.
Numa
visão niilista, Roberto acredita que a vida é um absurdo, não tem qualquer
sentido, e coleciona recortes de jornais com notícias que comprovariam sua
crença no nonsense do existir humano.
Até que vê que uma de suas reportagens é a história daquele chinês que
desembarcou, sem ser convidado em sua vida. Espantado, ele não tem outra reação
a não ser repetir, pateticamente: “não pode ser... não pode ser... não pode
ser...”, e tomar um porre, como se, sob efeito do álcool, sua vida, de repente
abalada na estrutura das crenças, pudesse se refazer.
Podemos
ver, por trás do texto de Sófocles e do filme argentino, os dedos caprichosos
do destino, criando situações cuja gênese nos foge; de desenrolar que escapa da
nossa capacidade de controle; e de fim que não conseguimos imaginar. É ocioso
recomendar que nem busquemos entender, porque essa busca é da nossa natureza –
mesmo que saibamos de antemão que não teremos êxito, sempre queremos preencher
as lacunas dos porquês. Os deuses devem rir à solta, com nossas tentativas
infantis de compreender os desígnios. Mesmo porque, se chegarmos perto, eles
podem mudar a trama. Aliás, no filme, há um momento parecido com isso – um
policial resolve prender o jovem chinês; perguntado sobre a razão do
procedimento, já que não se tratava de um delinquente, responde que não devia
satisfação a ninguém e que o fazia porque “deu-lhe na telha”. Se “um babaca de
um funcionário público uniformizado”, nas palavras da personagem de Darín,
podia se abancar de “senhor do destino”, quanto mais a potências invisíveis a
nos enredar os pés apenas por acharem engraçados nossos tombos!
Blasfemar
contra as situações tampouco adianta. As tecedeiras continuam, inclementes, e
nossa saliva raivosa não as fazem hesitar um instante. Tentar parar a roda ou
mudar-lhe o rumo é, igualmente, tempo perdido. Resta a opção de correr à
frente, se possível, ou observar o desenrolar da trama e tirar algum proveito
das situações que se apresentarem. Classicamente, se recebemos um limão, por
que não fazer uma limonada? Que adianta reclamar, dizer que preferia uma
laranja?
A
vida está sempre a nos oferecer ocasiões de realização e aprendizado, que
raramente aproveitamos. A todo instante, algo nos ocorre – e não precisa ser
nada inusitado, fantástico – que pode tornar-se o portal de entrada para uma
experiência rica, mas deixamos escapar a chance. Por comodismo, por medo, por
indiferença, ou porque vivemos no automático, sem reflexão, sem atentar para o
que acontece. Ou mesmo porque perdemos um tempo valioso tentando remontar às
origens, enrolar o fio de volta ao novelo, questionando o porquê e a razão
daquilo.
Se
perguntássemos mais “e agora? O que faço com isso?”, talvez aproveitássemos
melhor as circunstâncias.
Um
cliente chato, inconveniente, aborda-nos no balcão ou no escritório – o que esse
encontro pode nos ensinar e que oportunidade nos traz? Podemos converter o
“mala” num amigo, ou podemos azedar ainda mais a situação, ou mesmo reagir com
indiferença, perdendo, quem sabe?, uma oportunidade de realização e ajuda.
Um
atendente é solícito e resolve rapidamente nosso problema – o que ele nos
ensina? Como retribuir e adubar esse comportamento? Ou relegamos à indiferença,
sob a desculpa de que ele é pago para isso?
Alguém
pede ajuda – fugimos da amolação que isso pode implicar, ou aproveitamos a
oportunidade para uma ação mais humana? O que aprender com o desespero do
outro? Como movimentar tudo aquilo que ingerimos
nas leituras de ética e moral, mas precisamos aprender na prática?
Alguém
estende a mão pressurosa, oferecendo-nos o socorro na queda que acabamos de
sofrer – agarramo-la, dando ao benfeitor a oportunidade de ser útil, e, a nós
mesmos, a chance de exercitarmos a humildade e a percepção de nossa fragilidade
e interdependência, ou desprezamos a oferta, externando uma superioridade que
não temos e semeando gelo num coração generoso?
Tudo
nos traz oportunidades valiosas. Um dia ensolarado pode sugerir um passeio e o
estreitamento de uma amizade que se inicia. Uma caixa que devia conter 150
parafusos, mas onde falta meia dúzia pode levar a uma reação irada, que nada
resolve, ou a uma reclamação educada, que soluciona o problema. Um amigo que se
preocupa com nossa solidão pode ser alguém querendo ajudar, ou um intrometido –
como vamos tratá-lo? Um muro sujo e mal cuidado é apenas algo a restaurar, ou a
tela para uma obra de arte – como escolhemos vê-lo? Tampas de caixa de sapato
são lixo a descartar, ou fundo para delicados desenhos – o que escolhemos?
Todas essas situações se apresentam no filme e levam a outras reflexões...
Nossa
vida pode ser um celeiro farto de alimento para nossas almas, ou uma carga a
arrastar, um desfiar incessante de lamúrias e pessimismo. A escolha é nossa. O
nosso livre arbítrio pode nos levar ao céu ou ao inferno, conforme o modo como
o usarmos. De uma forma, ou de outra, estamos
fadados à liberdade das escolhas – façamos nossas apostas.
1 “Um conto chinês”
(Un cuento chino), produção Argentina/Espanha,
de 2011; direção de Sebastián Borensztein; com Ricardo Darín, Muriel Santa Ana,
Ignacio Huang...
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