A mulher que passa
Affonso Romano de Sant’Anna
A cena
é a seguinte. Tentem visualizar.
Um bar
onde os coroas se reúnem para tomar sua cerveja. Um daqueles bares que
transbordam mesas e cadeiras pela calçada. E os senhores de cabelo grisalho,
alguns calvos, vários com aquela barriguinha de chope e de idade, conversando
suas sabedorias etílicas. Vão ali no fim de semana, acham-se vividos e
experimentados, todos têm estórias. Mas agora estão, digamos, apascentados.
E, de
repente, passa uma jovem. Linda, é claro. Mas linda daquelas que a gente
achando linda fica extasiado sem saber se cai de quatro, de joelhos, se canta a
Ode à alegria de Beethoven.
A
beleza rompeu, irrompeu no meio do dia e exige atenção.
A moça
passa diante desses vetustos e respeitáveis cavalheiros. Pior: ela desfila sua
presença sensual diante da ausência deles. Ausência? Explico-me. Ela é
presença, vida pulsante, atraente. E eles, porque têm aquela calvície, aquela
barriguinha, aqueles fios de cabelo branco (pensa-se, maldosamente), há muito
já se despediram do sexo.
Ela
vem vaporosa, caminhando com o seu namorado. Este detalhe (que revelo agora)
deve transformar a cena em algo ainda mais tocante, irritante, perturbador,
porque há um outro macho ao lado dela e eles, no bar, são um rebanho de
anciãos. É um jovem macho. Já não bastava ser um jovem macho, ele vem e desfila
natural e ostensivamente com essa fêmea soberba aos olhos daquela manada de
semivelhos?
Oh!
crueldade do tempo, oh! inclemência da idade!
Vamos
rever a cena desde princípio, agora que sabemos o que está acontecendo ou por
acontecer. Repito: um bar onde os coroas se reúnem para tomar sua cerveja e se
esparramam em cadeiras e banquinhos pela calçada e, de repente, irrompe uma
ninfa desfilando vaporosa junto a eles. A literatura está cheia de narrativas
semelhantes. Principalmente a poesia do final do século passado. As mulheres
desfilavam e os homens se extasiavam. Havia até ruas para isso. E a música
popular, modernamente, registrou na Garota de Ipanema esse esvoaçar de
juventude diante dos siderados sátiros.
Abre-se
um corte no tempo e no espaço. Todos, absolutamente todos, no bar como que
sentindo os apelos do feromônio, erguem suas narinas na direção do vestido que
libera aliciante juventude. Ah! O feromônio! Não se sabe de onde ele vem, que
trilha é essa que vai traçando por onde passa o objeto do desejo. O feromônio é
responsável também pela preservação da espécie. E aqueles machos sentiram no
vento e nos olhos a mensagem do desejo.
Já
quando era olhada de frente, a moça atraía instintos e olhares. Mas agora que
passou, o decote no ombro, os braços de fora, certos volumes discretos ondeando
sob o vestido, desencadeiam alucinações não ditas, apenas olhadas, imaginadas.
Ela é um tsunami em pessoa.
E o
pior: ela vem e ela lá vai de mão dada com outro macho.
E o
casal jovem passa indiferente.
Indiferente?
Ou
sabem que estão desnorteando os velhos machos na campina? Esse senhores de
meia-idade parecem aqueles alces cedendo (a contragosto) o terreno ao mais
jovem e forte.
Os
dois jovens passam triunfantes.
E aí
(como ocorre nos momentos ritualísticos e sagrados) rompe-se o véu do tempo e
do templo. Aqueles senhores, exilados em sua idade, em suas barriguinhas
alimentadas com cerveja e torresmo, acobertados por sua inapelável calvície,
sentem uma feroz saudade de sua juventude. A cena ocorre no presente, mas eles
estão no passado, trespassados. E a beleza e o desejo passam diante deles,
inatingíveis, arrogantes, como algo na linha do horizonte.
Um
desejo saudoso, impotente, ausente, distante, já vivido, se agita na memória
dos hormônios.
E a
moça vai passando inalcançável. Sem saber (ou sabe?) que está sendo despida,
percorrida, lambida, possuída pelos olhos ávidos e impotentes dos velhos
sátiros confinados em torno de um desolado e frio copo de cerveja.
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Publicado
no jornal Estado de Minas – ed. domingo/29.12.2013, caderno Cultura – pág. 8.
Capturado
em http://impresso.em.com.br/app/noticia/cadernos/cultura/2013/12/29/interna_cultura,101489/a-mulher-que-passa.shtml; em 29.12.2913.
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