A violeta que se
tornou rosa
Ficarmos restritos à nossa área de conforto tem lá suas vantagens. A
sensação de segurança e controle (muitas vezes enganosa) e algum espaço e tempo
para descansar, ajuda a repor as energias para retomar o caminho. O problema
está no excesso, ou quando deixamos o medo dominar e passamos a acreditar que
podemos perpetuar essa situação. A vida é um fluir constante e não pede nem
precisa da nossa anuência. Mas, mesmo assim, nos auto iludimos achando que temos
domínio da situação. Lembra da música Roda
Viva, do Chico Buarque (não?! Ei! Em que mundo você tem vivido, pra não se
lembrar de Roda Viva?! Pelamordedeus,
meu amigo, a vida não se resume a funks!):
“A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá...”
O pior, no entanto, nem é essa paz fictícia. Mais cedo ou mais tarde o
vendaval nos arranca até às raízes, derruba nossos castelos ilusórios e nos
toca para a frente, queiramos ou não. O pior são as oportunidades perdidas por
causa do medo de ousar.
Quantas paisagens deslumbrantes deixamos de ver, porque temos medo de
altura? Quantos sabores interessantes deixamos de degustar, porque nunca temos
coragem de experimentar um prato novo ou exótico? Quantos amores deixamos de
sentir, porque tememos qualquer envolvimento maior?
Podemos até chamar de humildade, de aceitação do que somos. Mas, na
maioria das vezes, não passa de medo. Covardia, pura e simples, de ousar um
passo a mais. Veja como as criancinhas fazem. Se jogam, tentam. Caem, machucam,
colecionam pequenos hematomas e inúmeros arranhões, mas não deixam de
experimentar o novo. E seguem fazendo isso, enquanto nossos medos, que
transferimos para elas, não as paralisem e transformem em pequenos adultos
tolamente cautelosos, como nós mesmos.
Leia, abaixo, a conhecida fábula da violeta que queria ser rosa,
revisitada por Gibran Khalil Gibran, e pense nisso...
A violeta ambiciosa
Gibran Khalil Gibran
Havia, num bosque
isolado, uma bonita violeta que vivia satisfeita entre suas companheiras.
Certa manhã, levantou
a cabeça e viu uma rosa que se balançava acima dela, radiante e orgulhosa.
Gemeu a violeta dizendo:
"Pouca sorte tenho eu entre as flores! Humilde e meu destino! Vivo pegada
à terra, e não posso levantar a face para o sol como fazem as rosas."
A Natureza ouviu, e
disse a violeta: "Que te aconteceu, filhinha? As vãs ambições
apoderaram-se de ti?
- Suplico-te, ó Mãe
Poderosa, disse a violeta, transforma-me numa rosa, por um dia só que seja.
- Tu não sabes o que
estas pedindo, retrucou a Natureza. Ignoras o que se esconde de infortúnios
atrás das aparentes grandezas.
- Transforma-me numa
rosa esbelta e alta, insistiu a violeta. E tudo o que me acontecer será
consequência dos meus próprios desejos e aspirações.
A Natureza estendeu
sua mão mágica, e a violeta tornou-se uma rosa suntuosa.
Na tarde daquele dia,
o céu escureceu-se, e os ventos e a chuva devastaram o bosque. As árvores e as
rosas foram abatidas. Somente as humildes violetas escaparam ao massacre. E uma
delas, olhando em volta de si, gritou as suas companheiras: "Hei, vejam o
que a tempestade fez das grandes plantas que se levantavam com orgulho e
impertinência."
Disse a outra:
"Nós nos apegamos à terra, mas escapamos à fúria dos furacões."
Disse uma terceira:
"Somos pequenas e humildes; mas as tempestades nada podem contra
nós."
Então, a rainha das
violetas viu a rosa que tinha sido violeta, estendida no chão como morta. E
disse:
- Vejam e
meditem minhas filhas, sobre a sorte da violeta que as ambições iludiram. Que
seu infortúnio lhes sirva de exemplo.
Ouvindo essas
palavras, a rosa agonizante estremeceu e, apelando para todas as suas forças, disse
com voz entrecortada:
"Ouvi vós,
ignorantes, satisfeitas, covardes. Ontem, eu era como vós, humilde e segura.
Mas a satisfação que me protegia também me limitava. Podia continuar a viver
como vós, pegada à terra, até que o inverno me envolvesse em sua neve me
levasse para o silêncio eterno sem que soubesse dos segredos e glórias da vida
mais do que inúmeras gerações de violetas, desde que há violetas.
"Mas escutei no
silêncio da noite e ouvi o Mundo superior dizer a este mundo: "O alvo da
vida é atingir o que há além da vida." Pedi então à Natureza - que nada
mais é do que a exteriorização de nossos sonhos invisíveis - transformar-me
em rosa. E a Natureza acedeu ao meu desejo.
"Vivi uma hora
como rosa. Vivi uma hora como rainha. Vi o mundo pelos olhos das rosas. Ouvi a
melodia do éter com o ouvido das rosas. Acariciei a luz com as pétalas das
rosas. Pode alguma de vós vangloriar-se de tal honra?
"Morro agora,
levando na alma o que nenhuma alma de violeta jamais experimentara. Morro,
sabendo o que há atrás dos horizontes estreitos onde nascera. É esse o alvo da
vida".
(Parábolas - Gibran Khalil Gibran)
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