INVEJA E CALÚNIA NAS RELAÇÕES HUMANAS
Por Tania
Azevedo Garcia (07/12/2013)
Segundo narrativa apresentada em Gênesis, o
primeiro livro bíblico, Adão e Eva tiveram dois filhos. Caim, o mais
velho, tornou-se um lavrador e o mais novo, Abel, pastor de ovelhas. Certa
ocasião, como oferendas a Deus, Caim apresentou o fruto de sua terra e Abel,
uma das ovelhas de seu rebanho. Deus agradou somente da oferta de Abel,
deixando Caim enfurecido. Tomado pela inveja, Caim convida Abel ao campo e
assassina seu irmão.
Apeles, pintor grego, acusado de um crime que não
cometeu, utiliza como recurso de defesa, um quadro: “A Calúnia”.
Impressionados pela expressão das figuras
presentes na obra do artista, os juízes o absolvem. Da arte de Apeles, não há
vestígios. Entretanto, no século XV, tendo por referência os escritos de
Luciano de Samosata, Boticelli reproduz a obra perdida do artista grego, com a
pintura “A Calúnia de Apeles”. Na sociedade italiana em que viveu
Boticelli, a calúnia e a inveja eram temas recorrentes.
As narrações acima não possuem correlação
histórica. Elas apenas ilustram um sentimento e um comportamento tão antigos
quanto à história da humanidade e muito presentes nos tempos atuais.
Mas o que são e como ocorrem?
A inveja é um sentimento que só os outros têm. “Eu
nunca tive inveja de ninguém”. Negada nos círculos sociais, ela expressa a
frustração que sentimos por nós mesmos. Tornamo-nos intolerantes por nos
percebermos menores que os outros. Mas não podemos assumir que somos ou nos
sentimos inferiores. Consequentemente, negamos sua existência. Contudo, a
negação não nos impede de atuar. Caim matou Abel, mas existem outras formas de
excluirmos aqueles dos quais sentimos inveja. Uma delas é a calúnia.
Filha da inveja, a calúnia possui a arte de se
manifestar sem que o caluniador seja identificado. Geralmente revestida de um
pouco de verdade, ela se espalha facilmente, com alcance impressionante. Como
descreve a nobre francesa, Diane Poitiers: “a calúnia é como uma moeda
falsa: muitos que não gostariam de a ter emitido fazem-na circular sem
escrúpulos”. Através dela, o invejoso desonra, exclui, “mata” o
objeto de sua frustração.
Relações humanas que envolvem riqueza e poder são
campos férteis para o surgimento da inveja e da calúnia. A história da
humanidade está repleta de eventos. Nenhum contexto está livre. Nas famílias,
nas igrejas, na política. “Vivendo por transmissão, a calúnia se aloja
onde encontra terreno fértil”, alude Shakespeare em “A Comédia
dos Erros”. Na atualidade, inveja e calúnia emergem com alta incidência,
especialmente nos ambientes mais competitivos, como nas organizações.
Em virtude da necessidade de aumento de produção,
muitas empresas estimulam a competitividade entre aqueles que, em tese,
deveriam cooperar entre si: seus profissionais. No império do sucesso, o
fracasso é censurado. Todos devem demonstrar competência, satisfação e,
especialmente, felicidade. Demonstrar inveja é atestar que somos incompetentes,
menores, fracassados. Assim, não assumimos o sentimento que, na maioria das
vezes, é inconsciente.
Dificilmente, mas não impossível, veremos alguém
matar outro numa organização, como fez Caim a Abel, por causa da inveja. Não havendo
espaço para todos, pois essa é a lógica do capitalismo selvagem, a calúnia se
torna, então, uma arma para destruir aqueles que podem galgar postos mais
elevados; aqueles que têm ou parecem ter mais competência; ou, que demonstram
ser mais felizes.
Quanto mais competitivo e agressivo é um ambiente
de trabalho, maior probabilidade de ocorrência da inveja e da calúnia. Esta
pode ser promovida com maestria até pelo “inocente”, aquele que a maioria
acredita ser o mais confiável, puro e ingênuo, incapaz de participar de ato tão
infame.
Retomando Gênesis, ao perceber a frustração de
Caim, por sua oferta ter sido preterida, Javé diz: “por que estás
irritado e com o rosto abatido? Se fizeres o bem, não andarás de cabeça
erguida? Mas se não fizeres o bem, o pecado está à espreita diante de tua
porta; ele se esforça para conquistar-te, mas tu deves dominá-lo”.
Do ponto de vista individual, tomar consciência de
sentimentos e emoções que nos movem de forma tão espontânea e natural, como a
inveja, talvez seja um caminho para evitarmos atos antiéticos como a calúnia.
Quanto às organizações…
Referências
•
BÍBLIA Sagrada de
Aparecida: São Paulo: Ed. Santuário, 2010. Gênesis, cap. 4.
•
Garcia, Ely
Bonini. Antropologia da alegoria da calúnia. BH: Artear Editora, 2010.
•
Tomei, Patrícia
Amélia. Inveja nas organizações. São Paulo: Makron Books, 1994.
______________________________
Fonte deste e de outros textos da autora: http://saladecultura.wordpress.com/2013/12/07/inveja-e-calunia-nas-relacoes-humanas/; acessado em 08/12/2013.
-o-
Segundo Ovídio, a Inveja (do lat. invidia = “olhar torto”) mora em uma
casa “toda manchada de negra peçonha, escondida em um vale, privada do sol; nenhum
vento ali sopra; imperam a tristeza, o frio intenso, e a escuridão, com o fogo
sempre ausente”; alimenta-se de carne de víboras; tem “o corpo descarnado, seu olhar
não se fixa em coisa alguma, os dentes são cobertos de sarro, o peito esverdeado
pela bílis, a língua empapada de veneno. Não ri, a não ser quando a diverte o
espetáculo de um sofrimento; não dorme, pois as preocupações a mantêm em
vigília, mas assiste aos sucessos dos homens, desespera-se, e esse desespero é
o seu suplício”. (As Metamorfoses – Livro II: Aglaura. Rio de Janeiro: Ediouro,
1983; pág. 45)