Os dois cães
José Lourenço de Sousa
Neto
Um homem que era dono de dois cães ensinou um a caçar e fez do
outro seu cão de guarda. E, então, cada vez que o cão de caça saía a caçar e
trazia alguma presa, o dono atirava um pedaço dela também para o outro.
Indignado, o cão caçador passou a censurar o cão de guarda, pois, enquanto ele
próprio vivia saindo e se estafando, o outro nada fazia e se deliciava com os
frutos do esforço alheio. Então o cão de guarda lhe retrucou: “Mas não faça
críticas a mim, e sim ao meu dono! Foi ele que me ensinou não a trabalhar, mas
a desfrutar do trabalho alheio”. (Os
cães – Esopo)
Podemos nos apropriar dos dois cães metafóricos de Esopo e ver
neles duas instâncias de nossa alma. A que busca e a que retém. Embora lados da
mesma moeda, não se confundem em suas ações e motivações intrínsecas.
A parte de nós que caça é aquela que se aventura pelo mundo.
Procura conhecê-lo e identificar oportunidades. Fareja coisas e situações que
lhe sejam úteis. Interage com o ambiente, com as pessoas, objetos e
circunstâncias, e procura obter para si o que julga necessário à sua
subsistência.
O exercício da caça é perigoso e requer técnica. Não é o simples
ver e colher, mas implica em, identificando a presa, preparar a tocaia, o bote
e consumação do ato. Nessa atividade, inteligência e força são requeridas. A
estratégia deve ser bem traçada previamente, e opções consideradas, caso falhe
o primeiro plano. Em várias situações o caçador pode ferir-se seriamente,
comprometendo a própria vida – especialmente quando o alvo é cobiçado por
concorrentes tão ou mais preparados.
Caçar é uma atividade para
fora, para buscar e capturar. É dinâmica e plena de energia. Mente e corpo
em atuação harmônica, para que a presa não escape.
A contraparte que guarda, volta-se para dentro e se preocupa com a
manutenção e o zelo. Está interessada em reter, sem cuidar de buscar mais. Não
está atrás de oportunidades fora, mas procura riscos de vazamento e perda.
Cuida de possíveis ladrões, sem olhos para presas furtivas. Não interage –
reage às ameaças. Não se estica no espaço para o bote, mas encolhe-se na
proteção e no resguardo. Tocaia, armando ratoeiras. Corre sua dose de risco,
mas de uma natureza muito diferente da do caçador.
O primeiro cão é ativo; o segundo é passivo.
O equilíbrio das coisas exige as duas performances. Parafraseando
Eclesiastes, há um tempo para caça, e outro para preservar o que se caçou.
Perdemos a harmonia quando privilegiamos qualquer um desses aspectos de nossa
conduta além da conta justa. Se caçamos demais, roubamos o meio em que vivemos.
Açambarcamos o que não devemos com o discurso equivocado do merecimento – “fiz
por onde!”. Se o que nos move é apenas o prazer da atividade física e o sangue da presa, passamos a predadores
nocivos ao meio. Nossa fome nunca é saciada, porque uma presa abatida é
estímulo para buscar outra, e mais outra... Queremos sempre mais e nunca
preenchemos esse oco na boca do estômago, porque buscamos fora o que só podemos
encontrar dentro.
Mas esse mal traz consigo seu próprio remédio. Como diz a música
popular, “quem mata o que não se come, não perde por esperar”. Mais cedo ou
mais tarde nosso tempo se esgota e vamos nos dar conta de que tanta ação
resultou em nada de efetivo para nosso crescimento espiritual.
Por outro lado, se guardamos demais, transformamo-nos em sovinas
da vida. Somos como o tolo do Evangelho, que armazenou para as traças e os
ladrões, sem perceber a morte iminente, que pode nos acometer em qualquer
instante e lugar. Ficamos obesos, preguiçosos e lentos, pela excessiva
permanência nas torres de vigília. Tememos tudo e todos, como ladrões
potenciais das riquezas que julgamos
possuir. O menor gesto do nosso vizinho é uma ameaça à nossa tranquilidade.
Olhamos o mundo com os olhos esgazeados da desconfiança e do medo. O afã de
reter e proteger nos consome. Nossa vida perde toda a graça e tudo se resume ao
zelo com as posses. E, assim, não percebemos quando passamos de possuidores a
possuídos – nossos bens nos escravizam.
Quando nos dirigimos para nosso trabalho, na busca da
sobrevivência, que cão late mais forte dentro de nós? O caçador voraz, que de
tudo quer se apropriar, ou o vigilante paranoico, que vê ameaça nas menores
sombras?
Qualquer um deles que prevalecer tem a capacidade de tornar nossa vida
um inferno. Deveríamos escolher o caminho do meio, como já preconizavam os
antigos sábios. Caçar na justa medida da nossa fome; guardar o que vale a pena
ser guardado. O conselho de Paulo, apóstolo, é de grande sabedoria: “Tudo me é
lícito, mas nem tudo me convém. Todas as coisas me são lícitas, mas não me
deixarei dominar por nenhuma” (ICor 6:12).
Buscar o que necessitamos
no mundo é da lei de sobrevivência. Buscar o excesso corre por nossa conta e
risco.
Guardar o que realmente nos aproveita é medida de precaução e bom
senso – previdência. Armazenar em excesso engorda e entorpece o espírito.
Tanto uma postura quanto outra é muito difícil. Mas quem disse que
crescer é fácil? Nossa sociedade predispõe e estimula ferozmente o consumismo
(caça) desenfreado. Ao mesmo tempo, o clima de insegurança que nos envolve, até
por consequência do muito ter,
torna-nos demasiadamente apegados a coisas e valores passageiros. Mas os dois
cães habitam em nós – somos nós. Qual dos dois alimentamos mais?
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Contato com o autor: lourenco@jlourenconeto.com.br.