Você
acha que isto é, realmente, amor?!
José Lourenço de Sousa Neto (fev/2014)
É incrível
a nossa capacidade de distorcer conceitos para explicar a pobreza de nossos
sentimentos, a rasteirice de nossos pensamentos e a mesquinhez de nossos
desejos.
O amor, que deveria
ser o auto-esquecimento, pelo menos parcialmente, para contribuir para a
promoção e a felicidade do outro, é dessa categoria de conceitos distorcidos
até à
exaustão com o propósito exclusivo
de justificar nosso profundo egoísmo. Não temos coragem de encarar e admitir
nosso egocentrismo e, por isso, travestimo-lo de inúmeros nomes:
amor-próprio, respeito próprio, autoestima, dignidade, etc.. E justificamos esse
comportamento autor-referenciado na maior desfaçatez, com afirmações que têm ampla aceitação
e aprovação social, como, por exemplo, “primeiro eu, depois o outro”, ou “se
não cuido de mim, como posso cuidar do outro?”. Pior ainda é a distorção da
máxima crística, quando, cinicamente, retrucamos: “para amar o meu próximo,
tenho que me amar primeiro”.
O mais comum é
encontrarmos um terrível parasitismo espiritual, que denominamos, sem o menor
pudor, de “amor”. Desejamos, queremos, temos
fome do outro
e chamamos isso de “amor”. Entendemos que, em nome do “amor”, o outro tem que se submeter ao
nosso querer e aceitar nossa opressão. Pedimos que o outro se consorcie conosco
“porque o amamos”. Não nos preocupamos tanto em saber se ele nos ama, nem se
esse consórcio vai atendê-lo tanto quanto a nós. Interessa o nosso lado. O
outro é secundário. Agimos como o parasita – lançamos nossos tentáculos sobre o
outro, penetramos-lhe o organismo físico e mental, sugamos suas energias até drená-las, em nome do “amor”! Não percebemos que, assim, não
passamos de vampiros psíquicos.
Num processo mais
elaborado, os dois lados têm comportamento igual, isto é, os dois são vampiros e se atracam. Aos
olhos desprevenidos, ou talvez coniventes, da platéia cúmplice, parecem um
romântico casal em pleno usufruto do “amor”. A uma observação mais acurada, não
escaparão os tentáculos negros da mútua dominação. Ambos sugando e escravizando
o outro com uma aura de comunhão idílica. Basta que um dos dois tente um
movimento autônomo, ou que algo externo venha perturbar esse equilíbrio tenso,
para que a economia da relação seja ameaçada. E ocorrerá uma reação de
reequilíbrio, um aperto maior do laço e estrangulamento mais forte de um, ou dos
dois parceiros.
Esse
constrangimento mútuo tem uma tecitura sofisticada, complexa. De um lado, os
indivíduos se enlaçam, ambos se prendendo. Ou há uma entrega estratégica em que um elege o outro responsável pela sua
felicidade, e, numa chantagem emocional descarada, ou sutil, subjuga-lhe a vontade
via processo de culpa. Aquele que, por qualquer motivo, desejar romper a relação,
ou, sem chegar a tanto, apenas queira afrouxar um pouco os laços sufocantes,
vai se sentir culpado pela dor que causar no outro e acabará recuando, mantendo
o mutualismo doloroso.
No
primeiro caso, em que apenas um domina e se locupleta da energia do outro, ocorre
o parasitismo, ou vampirismo, puro e simples. Afastando-se o parasita, a vítima
pode recobrar sua vida. No segundo, em que se estabelece a dependência mútua, o
afastamento de um pode implicar a
“morte” dos dois, há simbiose, em que os dois organismos se “beneficiam” e se sugam.
Isso não pode ser
amor!
O
amor é libertador, construtivo e alimento, sem, portanto, lesar ninguém.
Se
a felicidade depende de alguma ação ou gesto do outro; se o afastamento do
outro leva à decisão de “puxar a corda” para estreitar o laço; se a
sensação de posse fala mais alto do que a disposição para soltar, liberar; se o
sorriso depende de alguma coisa que o outro venha a fazer, ou deixar de fazer,
essa relação pode ser qualquer coisa, exceto “amor”. Vampirismo, parasitismo,
simbiose, egoísmo a dois, mas não “amor”... Parasita, vampiro ou simbionte não são seres que amam.
A
figura que abre este texto não é, nunca, uma ilustração do amor. É exatamente o
contrário. A união dos dois dedos, forçada pelo elástico tensionado, não é fruto
de um desejo livre, mas consequência de uma força centrífuga – em que os
objetos são jogados para fora do centro. Soltar o elástico pode provocar dor
num ou noutro. Daí a acomodação na posição desconfortável. Cada um abre mão de
parte da felicidade, para não sofrer as consequências do exercício da liberdade
(Freud explicou isso muito bem em “O
mal-estar na civilização”).
Romper
essa dinâmica escravizante deveria ser nosso propósito, se queremos, realmente,
amar.
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Do Dicionário Houaiss:
Simbiose: interação entre duas espécies que vivem juntas;
comensalismo, parasitismo. / Associação entre seres vivos na qual ambos são
beneficiados; consortismo, mutualismo. / Associação íntima entre duas pessoas.
Simbionte: cada um dos que vivem em simbiose.
Parasitismo: interação entre duas espécies na qual uma delas, o
parasita, se beneficia da outra, o hospedeiro, causando-lhe danos de maior ou
menor importância. / Enfermidade causada por parasita. / Qualidade, condição ou
comportamento de parasita.
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