No tempo do livro - João Ubaldo Ribeiro
Quem me conhece sabe da minha
compulsão por livros, mas talvez desconheça que esse vício (vício?!) se estenda
também a revistas, jornais e... recortes. Centenas, milhares deles, espalhados
pelo apartamento. Em gavetas, caixas de papelão, arquivos, prateleiras, dentro
de livros. Amarelados pelo tempo, craquelados, semidestruídos – alguns quase se
desmancham numa infinidade de “caquinhos” de papel ressecado, só de serem
tocados. E o cheiro insuportável de poeira – poeira do tempo, argh!
Volta e meia resolvo fazer uma limpeza
e botar toda essa tranqueira fora. Mas aí caio na armadilha de “dar uma relida”,
antes de decidir. E se ponho no lixo um ou outro papel, volto para a caixa 999
outros...
Hoje foi um desses dias e acabei me
deparando (reencontrando?) com a crônica abaixo, do João Ubaldo Ribeiro.
Ao reler essa crônica, o prazer de
desfrutar uma prosa deliciosa veio misturado com uma pontinha de tristeza
multifacetada: saudade das leituras intermináveis. Ubaldo cita Monteiro Lobato,
Dom Quixote, Beau Geste, Tarzan... – ouso acrescentar Karl May – Winnetou e
tantos outros livros -; a saudosa coleção Jabuti (refiro-me aos livros de capa
listrada, em edição barata da Saraiva, da década de 1960); Alexandre Dumas, pai
e filho (quem se lembra d’Os Irmãos
Corsos, d’A Tulipa negra?); Júlio
Verne; a coleção Argonauta, de ficção científica (onde minha geração fez
contato com autores como Arthur Clarke, Isac Azimov, Martin Caidin – de Perdidos no Espaço –, e tantos outros);
o impagável Tesouro da Juventude... Ah, vamos parar por aqui!
Saudade dos vôos da imaginação, em que
caçávamos desde Moby Dick, com Herman Melville, até alienígenas, com H. G.
Wells (em A Guerra dos Mundos,
tornado famoso com Orson Welles); ou nos batíamos com piratas e bucaneiros de
todo tipo, atrás de uma ilha do tesouro
perdida em nosso oceano interior.
Mas também uma tristeza com a
perspectiva do fim do livro tal como o conhecemos. Mas, muito pior, tristeza com
o pouco gosto pela leitura que vemos na galerinha de hoje (há exceções,
claro!).
É! Estou virando mesmo um velho
carola... Deixo vocês com o texto do João Ubaldo e vou me encolher em algum
canto da minha biblioteca. Com certeza, existem bilhões, trilhões, quaclhões
(diria Tio Patinhas) de palavrinhas que merecem ser lidas. Os personagens são
outros, outros são os autores e temas, mas são sempre livros, deliciosos
livros.
No tempo do livro
João Ubaldo Ribeiro
Ah, nem conto a vocês como era, fico
com medo de acharem que estou mentindo. Mas sei que não estou, quando lembro o
dia começando a se esgueirar por entre as frestas dos grandes janelões do
casarão térreo em que morávamos, e eu, menino de oito ou nove anos, pulando
afobado da cama, para mais uma vez me embarafustar pelo meio dos livros. Quase
febril, ansioso como se o mundo fosse acabar daí a pouco, eu nem sabia com quem
ia me encontrar e aonde viajaria, em nova manhã encantada. Não havia problemas
para eu me embolar com os livros, porque eles não só estavam junto à minha
cama, mas espalhados da cozinha ao banheiro, em estantes para mim altas como
torres, algumas das quais tão pejadas que volta e meia estouravam, viravam
cachoeiras de papel e vinham abaixo, dando a impressão de que as paredes e o
chão se dissolviam em livros.
Problema havia na escolha, porque
nenhum deles era proibido por meu pai, a não ser, como muito depois ele me
contou, os que ele queria que eu lesse, me escondendo sem saber que tinha caído
num ardil. Podia ser mais um volume da coleção de Tarzan que eu já tinha lido
praticamente toda e não acabava nunca, porque repetia os favoritos. Não, talvez
o Dom Quixote, em dois tomos imponentes que eu mal conseguia sopesar e cheio de palavras portentosas que eu
não compreendia e não ousava me esclarecer com o velho, porque já conhecia a
resposta.
— Dicionário, jumento bípede -
respondia ele. - E copie o verbete para me mostrar depois.
— O que é verbete?
— Dicionário, miolo ralo. E copie esse
também.
As gravuras de Gustave Doré que
ilustravam as desditas do engenhoso fidalgo, em imagens cheias de sombras e
figuras desconhecidas, me metiam medo mas eram irresistíveis e, mesmo sem
entender direito o que aquele livro tremendo me contava, eu sempre voltava a
ele e muitas vezes me pilhei devaneando em meio a um descampado e diante de
cata-ventos, na companhia de um magrelo em seu cavalo ainda mais magro
e de um gordo em seu burrico. Mas eu
podia preferir ingressar na Legião Estrangeira, relendo Beau Geste ou Beau
Sabreur, que me deixavam com sonhos de me alistar assim que completasse vinte
anos, para ir viver entre os lendários tuaregues e conquistar o amor da mais
linda princesa do deserto.
Ou podia ir para o Sítio do Picapau
Amarelo. Quando Monteiro Lobato, ainda hoje, para mim, um dos maiores
escritores de todos os tempos, em qualquer lugar, morreu e seu enterro foi
mostrado pela revista O Cruzeiro, demorei muito para acreditar. O sítio
continuou a existir, do mesmo jeito que o pó de pirlimpimpim, a viagem ao céu,
o saci-pererê e toda a mágica que o
grande Lobato criou. Tanto assim que peguei um caderno e comecei a escrever
novas aventuras de Narizinho, Emília e Pedrinho, até que meu pai olhou minha
produção, disse que estava mal escrita, me chamou de plagiário e me mandou ver
no dicionário o que isso queria dizer. Desisti da empreitada, mas persisti em
escrever, para desgosto do velho, que até morrer lamentou que eu não fosse
tabelião, como ele com toda a razão queria.
Os outros meninos do bairro podiam não
morar num mar de livros como eu ou, ainda menos, ter um pai igual ao meu, mas
não eram muito diferentes. Jogávamos bola (eu, hoje craque do passado, era
fominha), brincávamos de médico com as meninas, fazíamos tudo o que as crianças
daquela época podiam fazer, mas todo mundo gostava de ler, porque ler
representava a liberdade e a fantasia. Comentávamos nossos heróis, organizávamos empréstimos de livros e
gibis e mentíamos esplendidamente, em tertúlias em que acreditávamos nas
histórias dos outros, contanto que acreditassem nas nossas - era tudo a verdade
de nossas imaginações. A vã memória não distingue mais entre o que eu contava e
os outros contavam, mas isso não tem importância. Todos nós, afinal, voávamos com Peter Pan e
Sininho e alguns de nós namoraram com a Wendy. Não houve um que não tivesse
enfrentado piratas, descido ao fundo do mar, ficado invulnerável a qualquer
arma ou invisível à vontade, decifrado códigos secretos, falado todas as
línguas e vencido todas as guerras e batalhas. Para isso, não tínhamos mais que
os livros, não precisávamos de mais que eles.
Mas isso era naquele tempo. Hoje, como
nos informam a toda hora, os livros estão mudando, aperfeiçoam-se cada vez
mais. Para ler modernamente, dever-se-á usar um dos muitos leitores eletrônicos
que já existem no mercado e que ainda vão surgir. Segundo uma notícia, um
desses aparelhos possibilita que seu usuário (não é mais leitor, é usuário)
interaja com as chamadas redes sociais na Internet. Suponho que se lê um
pedacinho e se manda um comentário via Twitter. Também estarão disponíveis, em
breve, livros com trilha sonora e com trechos narrados por voz. Os romances e
peças virão com clipes dos cenários descritos pela narrativa, entrevistas com o
autor, facilidade em substituir palavras difíceis por sinônimos acessíveis,
interatividade com o usuário ("faça seu final,
case Romeu com Julieta") - o céu é o limite. Acredito que, em relação a isso, vale
uma comparação com o celular, o qual começou como telefone, mas hoje é máquina
fotográfica, batedeira de bolos e ferro de passar e desconfio que está
substituindo o(a) parceiro(a) sexual. Admirável livro novo, que faz uma
maravilha atrás da outra e nem puxa pela imaginação, tudo já vem imaginado para
você. Espero que, tão famosamente equipado, o usuário ainda encontre um tempinho para ler.
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Fonte: jornal O Estado de S. Paulo –
ed. de domingo/9.maio.2010 – Caderno 2, pág. D4. Também disponível em
http://arquivoetc.blogspot.com.br/2010/05/joao-ubaldo-ribeiro-no-tempo-do-livro.html;
visualizado em 10.abr.2016.
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