quarta-feira, 30 de março de 2016
terça-feira, 29 de março de 2016
quinta-feira, 24 de março de 2016
Sobre a atual vergonha de ser brasileiro
Volta e meia releio o poema abaixo, do Affonso Romano. Normalmente num intervalo de alguns anos.
O que dói é que ele está sempre atualizado...
Um país exportador
E, no entanto, há quem julgue
___________________________
Fonte: Affonso Romano de Sant'Anna - Poesia Reunica - 1965-1999 (vol. 2). Porto Alegre: L&PM, 2004.
Volta e meia releio o poema abaixo, do Affonso Romano. Normalmente num intervalo de alguns anos.
O que dói é que ele está sempre atualizado...
Sobre a
atual vergonha de ser brasileiro
Affonso Romano de Sant'Anna
Projeto
de Constituição atribuído a Capistrano de Abreu:
Art. 1º.
– Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.
Parágrafo
único:
Revogam-se
as disposições em contrário.
Que vergonha, meu Deus! ser
brasileiro
e estar crucificado num
cruzeiro
erguido num monte de
corrupção.
Antes nos matavam de porrada
e choque
nas celas da subversão. Agora
nos matam de vergonha e fome
exibindo estatísticas na mão.
Estão zombando de mim. Não
acredito.
Debocham a viva voz e por
escrito
É abrir jornal, lá vem
desgosto.
Cada notícia
- é um vídeo-tapa no rosto.
- é um vídeo-tapa no rosto.
Cada vez é mais difícil ser
brasileiro.
Cada vez é mais difícil ser
cavalo
desse Exu perverso
- nesse desgovernado terreiro.
Nunca vi tamanho abuso.
Estou confuso, obtuso,
com a razão em parafuso:
a honestidade saiu de moda
a honra caiu de uso.
De hora em hora
a coisa piora:
a coisa piora:
arruinado o passado,
comprometido o presente,
vai-se o futuro à penhora.
Me lembra antiga história
daquele índio Atahualpa
ante Pizarro - o invasor,
enchendo de ouro a balança
com a ilusão de o seduzir
e conquistar seu amor.
Este é um país esquisito:
onde o ministro se demite
negando a demissão
e os discursos são inflados
pelos ventos da inflação.
Valei-nos Santo Cabral
Me lembra antiga história
daquele índio Atahualpa
ante Pizarro - o invasor,
enchendo de ouro a balança
com a ilusão de o seduzir
e conquistar seu amor.
Este é um país esquisito:
onde o ministro se demite
negando a demissão
e os discursos são inflados
pelos ventos da inflação.
Valei-nos Santo Cabral
nessa avessa calmaria
em forma de recessão
e na tempestade da fome
ensinai-me
- a navegação.
- a navegação.
Este é o país do diz e do
desdiz,
onde o dito é desmentido
no mesmo instante em que é
dito.
Não há linguista e erudito
que apure o sentido inscrito
nesse discurso invertido.
Aqui
o dito é o não-dito
e já ninguém pergunta
se será o Benedito.
Aqui
o dito é o não-dito
e já ninguém pergunta
se será o Benedito.
Aqui
o discurso se trunca:
o discurso se trunca:
o sim é não. O não, talvez.
O talvez
- nunca.
- nunca.
Eis o sinal dos tempos:
este o país produtor
que tanto mais produz
tanto mais é devedor.
Um país exportador
que quando mais exporta
mais importante se torna
como país
- mau pagador.
- mau pagador.
E, no entanto, há quem julgue
que somos um bloco alegre
do ‘‘Comigo Ninguém Pode’’
quando somos um país de
cornos mansos
cuja história vai dar bode.
Dar bode, já que nunca deu
bolo,
tão prometido pros pobres
em meio a festas e alarde
onde quem partiu, repartiu
ficou com a maior parte
deixando pobre o Brasil.
Eis uma situação
totalmente pervertida
- uma nação que é rica
consegue ficar falida,
- o ouro brota em nosso peito,
mas mendigamos com a mão,
- uma nação encarcerada
que doa a chave ao carcereiro
para ficar na prisão.
Cada povo tem o governo que
merece?
Ou cada povo
tem os ladrões a que
enriquece?
Cada povo tem os ricos que o
enobrecem?
Ou cada povo tem os pulhas
que o empobrecem?
O fato é que cada vez mais
mais se entristece esse povo
num rosário de contas e promessas,
num sobe e desce
- de prantos e preces.
num rosário de contas e promessas,
num sobe e desce
- de prantos e preces.
C’est n’est pas um pays sérieux!
já dizia o general.
O que somos afinal?
Um país pererê? folclórico?
tropical? misturando morte
e carnaval?
tropical? misturando morte
e carnaval?
- Um povo de degradados?
- Filhos de degredados
largados no litoral?
- Um povo-macunaíma
sem caráter-nacional?
Ou somos um conto de fardas
um engano fabuloso
narrado a um menino bobo,
- história de chapeuzinho
já na barriga do lobo?
Ou somos um conto de fardas
um engano fabuloso
narrado a um menino bobo,
- história de chapeuzinho
já na barriga do lobo?
Por que só nos contos de fada
os pobres fracos vencem os
ricos ogres?
Por que os ricos dos países
pobres
são pobres perto dos ricos
dos países ricos? Por que
os pobres ricos dos países
pobres
não se aliam aos pobres dos
países pobres
para enfrentar os ricos dos
países ricos,
cada vez mais ricos, mesmo
quando investem nos países
pobres?
Espelho, espelho meu!
há um país mais perdido que o
meu?
Espelho, espelho meu!
há um governo mais omisso que
o meu?
Espelho, espelho meu!
há um povo mais passivo que o
meu?
E o espelho respondeu
algo que se perdeu
entre o inferno que padeço
e o desencanto do céu.___________________________
Fonte: Affonso Romano de Sant'Anna - Poesia Reunica - 1965-1999 (vol. 2). Porto Alegre: L&PM, 2004.
domingo, 6 de março de 2016
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