José Lourenço de Sousa Neto
BH., 27/set/2018.
É verdade, mas peço que me permitam uma
pequena digressão, antes de contar o ocorrido.
Como se as mazelas da velhice não bastassem,
ainda existem as extensões para
complicar ainda mais nossa vida – óculos, aparelhos auditivos, bengalas e
outros adereços...
Quando mudei dos óculos comuns para as lentes
multifocais, anos atrás, foi um deus-nos-acuda! A gente perde a noção de
profundidade visual, e aí é aquele drama! O degrau é mais alto do que você vê, e aí toma tropeção. Ou é menor, e
você dá aquele passo ridículo, como se estivesse escalando uma montanha.
¾ Ê, pai! Precisava dar
esse passão para saltar essa pocinha ridícula?!
¾ Pocinha ridícula?!
Aquilo parecia uma lagoa!
¾ Mesmo que fosse uma
lagoa, seu passo dava para atravessar o Atlântico!
Atravessar
o Atlântico!
Sacanagem...
Até adaptar o cérebro às novas lentes, me vi
dando os passos mais desengonçados, com medo de pisar onde não devia. Minha
mulher disse que eu estava andando como o Mazzaropi (https://www.youtube.com/watch?v=Nxm3SGtcwQQ).
Até gostei dessa comparação, porque na minha percepção eu andava como aqueles
cachorros que calçam sapatinhos pela primeira vez (https://www.youtube.com/watch?v=GEVaXUAlF1Q).
Aparelho auditivo, outra novela! Estou às
voltas com um há 6 meses, e acho que não vou me adaptar. É uma droga!
Quando coloquei pela primeira vez, tive a
impressão que ouvia conversas que ocorriam no outro quarteirão, ou que estava
ouvindo até o pensamento dos outros. Tive a nítida sensação que meu silencioso
sossego acabava ali. Comentei com a fonoaudióloga que me vendera o aparelho,
ela riu e disse que era só uma questão de ajuste no volume. Calibrado devidamente,
até que o desconforto diminuiu bem, mas tem umas coisas curiosas... e chatas. A
gente escuta uma folha de papel sendo esfregada noutra, mas não escuta tão bem
uma pessoa falando, ou não compreende adequadamente (me disseram que na fase de
adaptação é isso mesmo. Tomara!...). Alguns sons ficam quase insuportáveis –
especialmente os eletrônicos (alarmes, sons de celulares, buzinas...) e o
bendito cachorro do vizinho, que tem um latido esganiçado danado de incômodo.
Antônio, meu neto de 6 anos, disse que não sabe se é um cachorro miando ou um
gato latindo; confesso que agora eu também estou confuso.
Mas tem um benefício extra: quando se tira o
aparelho, no final do dia, ah!, é uma delícia! Aquela redução no som ambiente é
muito gostosa! Isso ajuda a disciplinar o uso: a gente acaba usando o aparelho
para sentir a delícia de tirá-lo depois de algumas horas. Até me lembrou o
fradinho sadomasoquista do Henfil (quem lembra?!), que apertava o dedo na porta
só para sentir o alívio ao abri-la depois de um tempo (https://goo.gl/KaafjJ).
A maior surpresa com essa extensão do ouvido aconteceu num ônibus.
De repente, uma voz ao meu lado disse, depois de dois bip’s: “Pilha fraca”.
Tomei um susto e perguntei para a passageira
ao meu lado:
¾ O que mesmo a senhora
disse?
Ela me olhou como quem olhasse um caduco, e
respondeu:
¾ O senhor fez alguma
confusão. Eu não disse nada.
¾ Disse sim – alguma
coisa como “pilha fraca”...
¾ O senhor me desculpe,
mas não falei nada e nem ouvi isso.
E ficou me olhando como se, realmente, eu é
que estava com pilha fraca...
Algum tempo depois, a coisa repetia: “Pilha
fraca”.
Como dessa vez eu estava sozinho, comecei a
me apavorar com a ideia de estar ouvindo
vozes. Era só o que me faltava! Esquizofrenia ou mediunidade tardia?
Mas lembrei de que a fonoaudióloga havia me
falado desse recurso do aparelho: a vozinha me avisava que estava na hora de
trocar a pilha. Hoje, até que convivo bem com minha Iris Lettieri particular.
Agora, a terceira extensão – a bengala! Ah, essa ninguém merece!
Com os óculos, nenhum problema. Mais da
metade da população usa e a adaptação foi tranquila; não chama a atenção. O
aparelho auditivo deve ir pelo mesmo caminho, além de ser discreto e as pessoas
só o percebem se você quiser deixar.
Mas, a bengala não! Todo mundo vê e a danada
é o símbolo ostensivo, evidente, gritante, ululante, da decrepitude. Prova de
que você está mesmo mal das pernas, não é só força de expressão.
De início tentei andar carregando a peça como
um troglodita carregaria um tacape. Fazia cara de poucos amigos, como se
dissesse para quem me olhava que aquilo era uma arma, e não um recurso para
meus joelhos vacilantes. Evidentemente que não colou. As pessoas me olhavam com
um misto de curiosidade e ironia: “Mas que velho mais besta!”
Acabei me submetendo e hoje até aceito como
um recurso válido e pode até ter seu charme – desde, claro, que eu aprenda a
usá-la como Bat Masterson (https://www.youtube.com/watch?v=BXkfEwXH1Cg).
Mas, então, vem a história do tombo.
Por duas vezes a peça atravessou na frente
dos meus pés, tropecei na danada e quase caí. Numa delas minha mulher viu e
palpitou (mulher da gente sempre palpita!):
¾ Você tem que usar a
bengala de lado e não na frente da perna. Assim, você vai tropeçar sempre.
¾ Mas eu ponho a
bengala de lado! A excomungada é que atravessa meu caminho...
¾ Como é que pode
isso?! Até parece que ela tem vontade própria.
¾ E tem. Essa danada
deve ter sido feita de madeira tirada de alguma árvore de enforcados e deve
estar possuída.
¾ Você é mesmo um cara
estranho!
Nessas horas lembro-me do Calvin e sua
bicicleta – que pula em cima dele quando ninguém está olhando. Minha bengala me
passa rasteiras sempre que acha oportunidade.
Dia desses fui ao Hospital Ortopédico, aqui
em Belo Horizonte, fazer fisioterapia (velho adora fisioterapia). Transitando
pelo corredor, a peste me dá uma rasteira e, dessa vez, não escapei – me
esborrachei no chão. Um funcionário da casa, que viu a cena, correu para me ajudar
e perguntou o que houvera. Respondi que minha bengala me derrubara. Ele não
conseguiu evitar uma risadinha irônica e perguntou:
¾ Uai! Mas a função
dela não é exatamente evitar isso?
Respondi que deveria ser, e pensei em falar
sobre objetos com vontade própria, árvores amaldiçoadas, coisas endemoninhadas,
mas desisti. Vai que ele chamava a enfermagem e me mandavam para o hospital
psiquiátrico!
Depois desse tombo, quando me vi sozinho com
a bengala, olhei firme para dois pontos que ela tem no cabo que, juro, devem
ser seus olhos malignos, e a jurei de morte: iria jogá-la no primeiro fogo que
encontrasse.
Não sei se é só minha impressão, mas ela
passou a se comportar. Não cruza mais meus passos, e até tem me dado um apoio
legal.
Acho que podemos, enfim, nos entender.
*
A propósito de tombos, estou me tornando um
exímio “tomador de tombos”. Mas isso é outra história...
-o-
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